29.4.09

Ampulheta


Eu já não sou mais o que fui outrora...
Tanta coisa minha ficou no passado.
Tenha-me somente pelo que agora
Encontras em mim, assim, renovado.
O rio que corre é sempre outro rio,
No instante seguinte: outra realidade.
Vão-lhe pelo leito, rolando a fio,
As águas passadas deixando saudade.
Voa apressado o tempo lá fora,
Foge entre os dedos, fugaz, indo embora,
Passa e desafia a fé e a ciência.
Esvai-se a areia no vão d’ampulheta,
Mostrando a certeza, a dura faceta,
Nessa inexorável impermanência.



Frederico Salvo

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26.4.09

Tesouro fugidio


À sombra leve um coração vadio
Queima a doce chama albergada.
Entre as paredes de um quarto frio
Paira a imagem da mulher amada.
E ele bate intenso em desvario;
Bombeia sangue em plena madrugada.
Esbofeteia o peito e por um fio
Retumba a vida. Arde compassada
A esperança plena de um dia
Beber da fonte alva que sacia
A sede de quem vive atormentado
Pelo amor: tesouro fugidio,
Que é dele a clava forte e desconfio
Não ter no mundo bem mais procurado.



Frederico Salvo

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25.4.09

Concomitância



Continua ecoando em mim
O som das palavras não ditas.
Permanece comigo o arrepio
Provocado pelas mãos que não me tocam.
Continuo sendo o vazio e o cheio,
Numa feroz concomitância.
Continuo delirando em versos,
Debulhando-me em devaneios
Que me enchem o espírito do muito querer
E o esvaziam das sensações calejadas
Pelo não poder ser.
Sou o instante derradeiro
Que separa a gota de orvalho que cai solitária,
Da imensidão de um oceano.
Sou como aquele que acena feliz e emocionado
Na chegada do trem,
Para uma plataforma onde não há ninguém.
Sou como a flor que desabrocha em magnífica beleza
Na solidão da mata fechada.
Como um mudo que,
Consciente de sua impossibilidade,
Extasiado, se cala.




Frederico Salvo

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21.4.09

Sonho adormecido


Jazia amorfo na gaveta o sonho
Qual suvenir d’uma lembrança boa.
Vivia ali, no esquecimento, à toa,
Desfigurado já não tinha cenho.
Ele que fora outrora tão vistoso,
Ele que dera vida em plenitude,
Inapetente agora de atitude
Vivia triste, quieto, desgostoso.
Por onde anda o dono desse sonho?
Está ali de semblante risonho
A burilar um verso, distraído.
Mas ele sabe no seio que o mundo
Deixou de ter o sentido profundo
Que lhe ofertara o sonho adormecido.



Frederico Salvo

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19.4.09

Centelhas


Contrariando o que nos parece ser normalidade, não te darei apenas o que recebo de ti. Oferecerei-te o meu respeito e o meu amor fraterno, não escancaradamente, mas com a sutileza como a que a natureza nos oferece com o cantar dos pássaros ou como a refrescante neblina a encobrir-nos e infundir em nós a procura de calor e aconchego. Darei, mesmo que em silêncio, o mais puro e mais sincero de mim. Não quero que penses que há indiferença em meu silêncio. Não há. Não quero em mim a semente de preconceitos maiores ou de ressentimentos disfarçados. Apesar da distinção existente entre nós, somos, juntamente com tudo o que vive ou não, centelhas da chama maior que está em toda parte e que torna-me reverente diante de ti da mesma forma que o faz, sempre, diante do mais ínfimo dos insetos ou diante daqueles que detém em si grande parcela de poder.


Frederico Salvo

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13.4.09

Flor de lótus


Bebo a água que me deste, cântaro.
Sinto a sede minha debelada.
Linda flor nasceu-me assim do pântano,
Feito lótus. A alma desabrochada
Sorve e farta-se da tua dádiva,
Refrigera o fogo bem no íntimo
Nessa bem aventurada prática
De tornar-me a dor um caso ínfimo.
Bem no chumbo da manhã chuvosa
Ganha a lótus dimensões de rosa
E de amor enfeita-se cativa.
Se sedento fui na longa estrada,
Da tristeza vil não há mais nada.
Vinga a flor, bem-vinda e compassiva.



Frederico Salvo

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10.4.09

Sorriso falho


Não me foi dado o direito de revê-la
Nem de recostar-me novamente em teu colo
E dizer-te o tamanho do meu equívoco.
Escondi de mim mesmo a verdade
Na tentativa de justificar-me.
Resguardei da vida o sorriso puro
E sorri a despeito da incômoda dor
Um sorriso falho de hepática cor.
Foi-me corroendo aos poucos a lembrança
Dos idos, das gargalhadas exatas.
Foi-me fugindo o menino... vazando em conta-gotas.
Agarrei-me aos dias de luta, de trabalho
E fui me refazendo a colar os cacos.
Nunca...nunca mais as convictas palavras
Que nos versos ardiam silentes.
Nunca mais ramalhetes a saltarem da boca.
Desenrolou-se o tempo constante
E o vento soprou irascível e inclemente
Os sonhos que se perderam na poeira.
Só ficou uma pedra no meio da estrada.
Única e inquebrantável:
Saudade.



Frederico Salvo

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6.4.09

Saudação

Na mais sincera alegria,
No mais completo prazer.
Num rompante de euforia
Saúdo Deus em você.
Na mais direta poesia,
Numa emoção sem porquê,
Na mais airosa magia:
Na-mas-tê.


Frederico Salvo
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4.4.09

Sopro seco


Se ainda fosse um vento polinizador
Haveria beleza a se ver depois.
Esperança de cores e aromas,
Promessa de canoros cantos,
Mas é somente um vento seco
De áspero passado e ressequidas possibilidades.
É somente um sopro que vaga pelo deserto
A encher de areia os olhos dos viajantes
Esse vento infértil assola a tudo
E revolve a terra na construção infinita
De repetidas paisagens.
Porque da mesma forma
Que não se colhem morangos em ameixeiras,
Assim também nunca soprará vida
Aquilo que rumina morte.



Frederico Salvo
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2.4.09

Brisa

...Mas apesar do vento
Há também a brisa leve
Que vem inebriar os sentidos,
Ventilar incompletudes,
Oxigenar compassada os desejos.
Vem se instalar no centro do peito
Onde a energia se transforma em vida
E põe-se a circular pelo corpo
Num rio vermelho,
A umidificar cada célula remota,
Cada milímetro sedento.
Queres, brisa, encontrar em mim a liberdade?
Queres em mim fazer mais sentido?
Ou vens até aqui apenas naturalmente,
Num encontro comum e inevitável?
Mas independente do que seja, brisa:
Sopra.
Sopra porque respiro-te bem.


Frederico Salvo

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