10.7.21

Ode às avessas

 A desconectividade que sinto

À sombra desses flagelos

Que rondam os nossos dias,

Traz errantes melodias,

Arestas de pesadelos

Regados a absinto.


E tudo então que havia

Ressoa tão esquisito

Como não houvesse nada.

Às portas da alvorada,

Ouve-se apenas um grito

Coimo anúncio de outro dia.


Por hora esse mormaço

Da realidade do homem

Enche o ar de fumaça.

E como encontrar a graça 

Quando os anseios dormem

Nas lembranças de um abraço?


A esperança se atropela

Pelas estradas vazias

das viagens malogradas.

E todas as coisas sagradas,

Tudo o que julgam utopia,

Na cálida tarde a luz reverbera.


Sobra em mim essa ode,

Esse caco de agonia,

Num avesso de quem me dera.


Frederico Salvo

31.01.21



Lume

Transformei-me em algo, assim, meio cortante...

Um punhal, um estilete, uma navalha.

Fui forjado no esmerilho constante,

pela mó inflexível da batalha.


Nessas curvas sinuosas cada passo

Foi um ato decisivo no caminho.

Cada nota dada fora do compasso,

Cada erro, cada gesto em desalinho


Deram fio expressivo a este gume

Que hoje fere a mim mesmo amiúde

Nas estradas deste mundo, vida afora.


E da lâmina que sou só resta agora,

Ser bem mais amor e, muito menos rude,

Esquecer da dor e ser somente o lume.


Frederico Salvo


4.12.13

Meu Deus



Meu Deus não tem religião.
É uma janela aberta a todas as raças,
credos e nações.
Meu Deus não é só meu;
é do outro também.
Tem nomes diversos 
em bocas de mesmo hálito humano.
Ao mesmo tempo que sorri nos teus lábios,
chora em outras janelas da alma,
pois Deus é ao mesmo tempo
alma e janela de si mesmo.
Habita o seio da mata virgem,
porque é mata virgem.
Chove e absorve-se.
Venta e farfalha-se.
Sofre e conforta-se.
É o Deus do mínimo e do máximo,
do muito e do pouco,
do certo e do errado.
Ele está em todos os olhos
e lê a si mesmo nas linhas traçadas.
Agrada-se ou não.
Desfaz-se em bem ou mal
nas comas do teu livre-arbítrio.


Frederico Salvo

24.11.13

O jugo mais forte


Um dia sangraram à inocência.
Sem rumo partiu ferida de morte.
Perdida, sem prumo, ao sabor da sorte,
Vagou sempre em busca de referência.

De pouco valeu a razão da ciência;
Foi justa e precisa ao curar o corte,
Mas não debelou o jugo mais forte:
A noite que ofusca toda existência.

Vieram os dias de riso e festa;
Vieram as noites doces de amores,
No ciclo, onde a vida faz primavera.

Mas sempre depois de tudo o que resta
É esse canteiro vazio de flores,
É esse rugido, constante, de fera.


Frederico Salvo


26.10.13

Sobre um soneto


No princípio um soneto é só vontade
É um cesto de motivos infindáveis.
Por ser pulso criativo é liberdade,
Nascedouro de afãs intermináveis.

Se uns versos ganham a folha, distraídos,
Outros tantos no alforje se arvoram
A estarem, como eu, comprometidos
E com fome desmedida me devoram.

Diluído me desfaço em quartetos,
Liquefaço minha alma em tercetos,
Sou as velas d'uma nau que encontra o vento.

Quando vale este instante, desconheço,
Pois dar vida a um soneto não tem preço.
Sou um pai a ter nos braços um rebento.


Frederico Salvo


13.8.13

Abraço-me


Nu, nem sei como cheguei até aqui.
Vim de longe, muito longe...
Lembrei-me de, entre tantos,
Escolher um dia um caminho,
Uma pequena trilha de terra batida.
Entretanto, por esse mesmo caminho simples,
Que teve por sinalização apenas estrelas,
Cheguei frente a frente a mim mesmo.
Assim, trazendo comigo a poeira da estrada,
Abraço-me.


Frederico Salvo

29.7.13

Refrigério


" Comprazei-vos, ó Deus; em me livrar;
Depressa, Senhor:
Vinde em meu auxílio".
(Salmos 69:2)

Eis que, na sombra do meio dia,
Curta, minguada e aos meus pés
Surgiu um refúgio.
Eu que olhava o sol
E sentia suas propriedades ígneas,
As vaporizações sufocantes,
Os consequentes suores indesejáveis,
Não reparei-a a gritar meu nome
E a indagar:
Lembra-te de mim?
Eu sou filha do frescor da noite
Que provaste um dia.
Caminha em frente,
Reúne forças,
Porque ainda hoje
Baterei inteira em tua porta
E serei teu refrigério.


Frederico Salvo