28.11.09

Alice no país das aparências


Por mais que o tempo passe eu me recuso
A dar por finda a alma de menino,
Porque se faço assim me tenho excluso
E sendo só adulto me confino

No rol da pequenez e da mesmice
Que abunda nesta terra tão tacanha;
Melhor viver assim como Alice
Do que me aventurar nesta façanha

De dar à vida, assim, um tom tão sóbrio
Ou boicotar-me à sombra do status
Por ter que digerir incoerências.

Prefiro ser menino a ser tão óbvio;
Viver se repetindo aos mesmos fatos,
Bailando no país das aparências.


Frederico Salvo


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Direitos efetivos sobre a obra.

24.11.09

Fogo príncipe



D’onde vem energia tanta
Que põe ímpeto em tuas veias?
D’onde surge essa fúria santa
Para ires onde anseias?
D’onde flui a ancestralidade
Que a ti trouxe o fogo príncipe?
D’onde virá essa verdade,
Ápice vivo dessa cúspide?
Vem de remotas vivências;
Complexa genealogia
Intrínseca nos passados teus;
E essa vem da transcendência,
Da luminosidade que guia
Que acostumaste a chamar de Deus.

Frederico Salvo



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21.11.09

Em suspenso


Adormece, vida. Adormece.
E eu entrego-me a minha cama.
Em suspenso põe o nosso drama.
Enquanto esqueço, tu me esqueces.
Adormece, pois quem me ama
Já está guardado numa prece
E as dúvidas, que bem conheces,
Estão no bolso do pijama.
Adormece e por fim descansa
Das tarrafas que o convívio tece
E depois em nossas águas lança.
Vá. Repousa, pois a mim parece
Que por hoje basta essa aliança.
Boa noite, vida. Adormece.


Frederico Salvo



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18.11.09

Vento interno


As nuvens rajadas do céu de abril
Chegaram sob a força de um vento
Que passou pelo meu rosto,
Beijando-me os olhos e lábios.

Em raios ainda tímidos, o sol,
Pela manhã, trouxe um abraço leve
Em sua energia pura de fogo
Sobre o meu costado nu.

Distraio-me com o balanço das folhas,
Açoitadas por esse mesmo vento.
Ainda não sabem que em poucos dias
O outono as jogará ao solo.

Serão apenas uma lembrança
Daquilo que um dia foram.

Há em mim também um vento interno
A balançar-me em saudade.
Sou um galho seco,
Um caniço solitário.

Vai distante a primavera.
As imagens que um dia foram flores
Adubaram o solo da minha terra
E fui um caule em desenvolvimento.

Senti a seiva dentro de mim,
Circulando pelas veias.
Alguns vieram depois
E deitaram-se sob minha sombra.

Houve deleite em sorrisos alegres
Antes do meu primeiro outono.
Depois caíram-me as folhas,
Aos meus pés, sombra não mais havia.

Perderam-se os sorrisos alegres...
os votos eternos...
Eu prossegui, resignado,
Às voltas com um monstruoso inverno.


Frederico Salvo.
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15.11.09

Exatamente



Não ficarei a julgar-me por ser isso ou não ser aquilo. Talvez pudesse ser muito mais ou então estar muito aquém do que sou hoje. Portanto, não escapo de carregar exatamente o fardo que mereço.


Frederico Salvo
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12.11.09

"Eulefante"


Que diferença há tão gritante
Entre mim e o imenso elefante
A não ser as enormes orelhas,
E o paquiderme não ter sobrancelhas?
Talvez por não ter pés redondos
Ou por não temer camundongos,
A ele, enfim, não me assemelhe.
Ou a silhueta não se espelhe.
Mas sinto que há comumente
Entre mim e esse ser diferente,
Algo único de rara beleza:
A essência da mãe natureza.


Frederico Salvo


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7.11.09

Imperfeito


Pudesse desfazer o que foi feito.
Tivesse como ter o que não posso.
Se fosse qualidade o meu defeito
E o drama de viver não fosse nosso.
Se Cristo fosse o próximo eleito
E a perna alcançasse além do passo.
Se não houvesse tanto preconceito
E a vida afrouxasse um pouco o laço.
Seria eu o mesmo que escreve
O desconsolo num soneto breve?
Seriam assim as linhas que eu traço?
Melhor que seja mesmo desse jeito,
Pois tudo o que no mundo tenho feito
É por não ser perfeito que o faço.

Frederico Salvo




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5.11.09

Natureza morta



Tu disseste que hoje o vaso está repleto
E a saudade aglomera-se em teu peito.
Tuas flores fazem tudo estar completo
Num arranjo muito mais do que perfeito.
Esse vaso é o meu coração de lata,
Essas flores são teus sentimentos quentes;
Quebram o gelo que o esfria, mas não mata;
Derretida pedra em tuas mãos ardentes.
Cai à noite e imponente sobre a mesa
Dorme o vaso, sob a luz da incerteza,
Da distância... aço frio que me corta.
Os teus dedos me escrevem um carinho
Que não salvam-me da dor de estar sozinho
Nos matizes dessa natureza morta.


Frederico Salvo

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Desenho de Leonardo Menescal

2.11.09

Foge agora! ( Uma homenagem a Dorival Caymmi)


(Poema escrito na época do falecimento de Dorival Caymmi)


Deixa pesar sobremaneira o teu corpo
E entrega tua resistência agora
Que já não tens mais força para a guerra.
Anda, pois é quase passada a hora
E a velha chama clara se encerra
No esperar, sábio e guerreiro, que jaz morto.

Lança da tua boca o último grito
Ao mundo que te parece distante;
Aperta a mão de quem está ao teu lado.
Faça da lembrança, dileta amante
E do sonho perdido, consolado;
Arremessa teus versos ao infinito.

Da dor retira o último sorriso
E joga como semente à boa terra
Para que haja lume no teu rastro.
Sobe até o ponto mais alto da serra
E assiste ao que agora é justo e preciso;
Põe tua bandeira a meio mastro.

E dorme, e dorme, e dorme, e dorme calmo,
Pois só louco amou como tu amaste
E teu canto pela pátria se espalha
Como a grandeza bem-vinda d’um salmo
Que encanta na voz de quem encantaste;
Foge agora! Vá p’ra Maracangalha.


Frederico Salvo
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